por Aldo Fornazieri
No Brasil basta que um político,
um jornalista ou um intelectual seja xingado num aeroporto ou num restaurante
para que os bem-pensantes liberais e de esquerda se condoam com o
"insuportável clima" de radicalização e de ódio. Todos derramam
letras e erguem vozes para exigir respeito e para deplorar as situações
desagradáveis e constrangedoras. Até mesmo a nova presidente do PT e
parlamentares do partido entram na cruzada civilista para exigir o respeito
universal, mesmo que para inimigos. Os
bem-pensantes brasileiros, cada um tem seu lado, claro, querem conviver
pacificamente nos mesmos aeroportos, nos mesmos restaurantes e, porque não,
compartilhar as mesmas mesas. Deve haver um pluralismo de ideias e posições,
mas a paz e os modos civilizados devem reinar entre todos e a solidariedade e
os desagravos precisam estar de prontidão. As rupturas na democracia e no
Estado de Direito não devem abalar este convívio.
Trata-se de um pacifismo dos
hipócritas. O fato é que no Brasil, a paz é uma mentira, a democracia é uma
falsidade e a realidade é deplorável, violenta e constrangedora. Deplorável,
violenta e constrangedora para os índios, para os negros, para as mulheres,
para os pobres, para os jovens e para a velhice. A paz, a cultura e a
ilustração só existem para uma minoria constituída pelas classes médias e altas
que têm acesso e podem comprar a seguridade social, a educação, a cultura e o
lazer. O Estado lhes garante segurança pública.
A hipocrisia pacifista das elites
econômicas e políticas e dos bem-pensantes sempre foi um ardil para acobertar a
violência que lhes garante os privilégios, o poder e a impunidade. Ardil que
anda inseparado de sua irmã siamesa - a democracia racial - e, juntos,
constituem a ideologia da dominação e da dissimulação da tragédia social e
cultural que é o nosso país.
O pacifismo é um brete, uma
jaula, que procura aprisionar e conter a combatividade cívica dos movimentos
sociais e dos partidos que não compartilham com a ideia de ordem vigente. Essa
ideologia operante exige que as manifestações de rua sejam sempre tangidas
pelas polícias e, quando algo não fica no figurino, a violência e a repressão
são legitimadas para manter a paz dos de cima. A democracia racial, que sempre
foi uma crassa mentira, difundida por bem-pensantes e por representantes do
Estado, é uma rede de amarras e de mordaças que visa impedir a explosão de
lutas e os gritos por direitos e por justiça de negros e pobres, que são pobres
porque são negros. A ideia de democracia racial também não passa de um ardil
para acobertar a violência e a opressão racial e econômica e para escamotear o
racismo institucionalizado - herança escravocrata entranhada como mentalidade e
como cultura na alma pecaminosa da elite branca.
Uma história violenta
O Brasil nasceu e se desenvolveu
sob a égide da violência. Não da violência libertadora, da violência cívica que
corta a cabeça dos dominadores e dos opressores para instituir a liberdade e a
justiça. Aqui, os malvados, os dominadores e opressores, nunca foram ameaçados
e mantêm o controle político a partir de um pacto preliminar do uso alargado da
exploração e da violência como garantia última do modo de ser deste país sem
futuro.
Primeiro, massacraram e
escravizaram índios. Depois, trouxeram cativos da África, muitos dos quais
chegavam mortos nos porões dos navios e foram jogados como um nada nos mares e
nas covas e se perderam, sem nomes, nos tempos. Trabalho brutal, açoites e
exploração sexual foi o triste destino a que estavam reservados. Essa compulsão
violenta ecoa até hoje, no racismo, na exploração e na própria violência contra
as mulheres em geral, pois a genética e a cultura brancas trazem as marcas da
impiedade machista da vontade de domínio, até pela via da morte.
A hipocrisia do pacifismo
bem-pensante não se condói sistematicamente com os 60 mil mortos por ano por
meios violentos - prova indesmentível de que aqui não há paz. Mortos, em sua
maioria, jovens pobres e negros. Também não se condói com o fato de que as nossas
prisões estão apinhadas de presos, em sua maioria, pobres e negros e sem uma
sentença definitiva. Presos que vivem nas mais brutais condições de
desumanidade.
Não se pode exigir paz e
civilidade num país que ocupa o quarto lugar dentre os que mais matam mulheres
no mundo, sem contar os outros tipos de violência de gênero. E o que dizer da
continuada violência contra os camponeses e do recorrente extermínio dos
índios?
A paz e a civilidade existem nos
restaurantes dos Jardins, nos gabinetes e palácios, nas redações da grande
mídia, nos intramuros das universidades, nos escritórios luxuosos, nos
condomínios seguros, nos aviões que voam levando os turistas brasileiros para
fazer compras no estrangeiro. Mas elas não existem nas ruas, nas praças, nas periferias,
nas favelas, no trabalho.
O Brasil caminha para o abismo,
sem destino, tateando no escuro, aprisionado pela sua má fundação e de sua má
formação. Precisamos recusar este destino e isto implica em recusar a mentira
hipócrita do pacifismo e da civilidade dos bem pensantes e falsidade da
democracia racial. Os gritos das dores das crueldades praticadas ao longo dos
séculos precisam retumbar pelos salões de festa das elites e nos lares e
escritórios perfumados pela alvura que quer disfarçar uma herança de mãos
manchadas de sangue e de rapina. Os historiadores precisam reescrever a
história deste país para que possamos entender a brutalidade do passado e do
presente e projetar um outro futuro.
A doce ternura da paz e da civilidade dos bem-pensantes, dos bem-educados, dos bem-vestidos, dos bem-viventes, precisa ser confrontada e constrangida pelo fato de que nos tornamos uma nação de insensíveis e de brutais, praticantes do crime imperdoável de desalmar as vítimas da violência para dar-lhe uma alma (branca) também insensível e brutal. Não temos o direito de persistir na mentira hipócrita e na enganação. Não temos o direito de interditar caminhos de liberdade e de justiça pelas nossas ideologias ludibriantes. Se não fomos capazes de construir um nação com direitos, justiça, democracia e liberdade, deixemos que os deserdados deste país a construam e, se possível, vamos ajudá-los com humildade e sem vaidades. A paz efetiva só existirá quando estes bens se tornarem realidade para todos.
A doce ternura da paz e da civilidade dos bem-pensantes, dos bem-educados, dos bem-vestidos, dos bem-viventes, precisa ser confrontada e constrangida pelo fato de que nos tornamos uma nação de insensíveis e de brutais, praticantes do crime imperdoável de desalmar as vítimas da violência para dar-lhe uma alma (branca) também insensível e brutal. Não temos o direito de persistir na mentira hipócrita e na enganação. Não temos o direito de interditar caminhos de liberdade e de justiça pelas nossas ideologias ludibriantes. Se não fomos capazes de construir um nação com direitos, justiça, democracia e liberdade, deixemos que os deserdados deste país a construam e, se possível, vamos ajudá-los com humildade e sem vaidades. A paz efetiva só existirá quando estes bens se tornarem realidade para todos.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).