Frei Betto
Hoje faz 60 anos que Getúlio Vargas morreu em Belo Horizonte, na minha casa, na esquina das ruas Major Lopes e Padre Odorico. Antes que me julguem louco, explico.
Meu, pai, Antônio Carlos Vieira Christo, assinara o Manifesto dos Mineiros, que apressou o fim da ditadura Vargas, em 1945. Ligado a UDN, papai dizia horrores de Getúlio.
As empregadas de casa gostavam dele e todos os anos, a 21 de abril, eu, criança, me misturava à multidão na BR-03 (hoje, BR-040), em frente à igreja do Carmo, para ver o ditador passar a poucos metros de nossa casa, a caminho de Ouro Preto, a fim de prestar sua paradoxal homenagem a Tiradentes.
Eu me postava à beira da estrada com o coração batendo como o de um escravo que desafiasse olhar nos olhos de seu senhor. Aquele era um momento de indizível solenidade. Precedido pelos batedores em suas possantes motocicletas de sirenes abertas, o carro do ditador vinha de capota arriada, cercado por seus famigerados capangas, que me pareciam os únicos personagens reais das histórias em quadrinhos que entretinham a minha infância.
Em agosto de 1954, a conjuntura política ferveu no Brasil. A Aeronáutica estava prestes a invadir o Palácio do Catete e destituir o presidente constitucionalmente eleito, respaldada pelos discursos inflamados de seu principal opositor, Carlos Lacerda.
Meu pai acompanhava tudo pelo rádio, com os ouvidos pregados nas fanfarras do Repórter Esso e, no fim da tarde, devorava com os olhos a Tribuna da Imprensa e O Globo, jornais de oposição que só chegavam a Belo Horizonte, vindos do Rio, na boca da noite.
Na noite de 23 de agosto de 1954, o rádio Philco de nossa casa esquentou. Era iminente a queda de Vargas. Meu pai, eufórico, grudou-se ao telefone e convocou parentes e amigos para transformar a festa de meu 10º aniversário, dois dias depois, em comemoração pelo fim político daquele que o levara à prisão no Estado Novo e o obrigara a regressar do Rio para Minas, ceifando sua promissora carreira de advogado em terras fluminenses.
Fiquei feliz. Eu não teria um simples aniversário. Teria uma festa de proporções nacionais...
Eis que na manhã de 24 de agosto estoura a notícia de que Vargas, ao alvorecer, dera um tiro no coração, preferindo “sair da vida para entrar na história”, como escreveu em sua carta de despedida.
Minha sensação foi de que o cadáver de Getúlio caíra na sala de minha casa. Meu pai, estupefato, ficou mudo, como se tivesse ajudado a puxar o gatilho. E cancelou a festa.
Foi, então, que presenciei algo que só mais tarde haveria de entender. Vargas conseguira tornar sua figura respeitada e amada pelo povo. Nos olhos lacrimejantes das empregadas domésticas e dos operários, vi espelhada a imagem da habilidade política daquele homem pequeno na estatura, mas grande na ambição. O poder era, para ele, não tanto um meio de impor sua vontade, mas o altar onde se sentia venerado pelo povo.
Contudo, nem Getúlio foi fiel ao povo, nem o povo foi fiel a Getúlio. O sentimento de amante traído o levou ao suicídio.
Foi meu mais triste aniversário. Não consegui remover Vargas da sala lá de casa.
Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder” (Rocco), entre outros livros
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