“Sexo e as Negas”: nosso corpo na berlinda da mídia e do imaginário social
17 de Setembro de 2014 por 3 Comentários
Por: Moara Correa e Bruna Rocha*
Não é necessário assistir à minissérie de
Miguel Falabella para entender o seu papel semântico na sociedade
brasileira, sobretudo em um momento como este, onde o povo negro começa a
acessar políticas direcionadas à Reparação Racial no Estado. Aliás, o
povo negro e, sobretudo, nós mulheres negras não merecemos passar por
isso. O Coletivo Nacional de Juventude Negra – ENEGRECER e a Marcha
Mundial das Mulheres vêm aqui denunciar esta produção em específico e
toda a histórica postura racista dos meios de comunicação de massa do
Brasil.
Devemos ressaltar que este não é um
debate MORAL. Mulheres negras têm o direito de exercer sua sexualidade e
podem existir produções que abordem este tema, assim como o tema da
afetividade. Quando se tratam de mulheres negras, inclusive, estes
debates ficam muito borrados. Acontece que existem formas e formas de
trabalhar com este tema, e aqui repudiamos a forma como é construído o
conceito de “Sexo e as Negas”.
Vamos começar pelo título: “As negas” é
uma expressão que soa como as falas dos senhores referentes às escravas
que estupravam diariamente – fato histórico responsável pela vangloriada
miscigenação brasileira. Esse fato, ao menos no Brasil, é também
responsável direto pelos discursos construídos em torno do corpo da
mulher negra para o imaginário social brasileiro – fenômeno o qual
chamamos de sexualização.
Se esse fator fosse uma exceção cultural,
certamente não representaria um problema social, com desdobramentos
reais na vida das mulheres. O discurso da sexualização é a base
simbólica para diversas formas de violência sofridas pelas mulheres
negras. É o nosso corpo colocado a partir do ponto de vista dos homens
brancos, reproduzido por homens negros e toda a sociedade. O lugar do
“sexo” é comprovadamente problemático por todos os estudos
antropológicos e feministas, para todas as mulheres e sobretudo para as
mulheres negras.
Enquanto mulheres, temos a sexualidade
negada. Já como mulheres negras, temos a afetividade negada também. A
mídia contribui para essa solidão; o sistema que mercantiliza nossos
corpos e nossos vidas nós coloca fora do eixo afetivo, ao passo que nos
impõe o mercado sexual, a erotização exacerbada e o trabalho doméstico
semi-escravizado.
Enquanto mulheres brancas têm sua sexualidade castrada e imaculada, o corpo negro, construído como “maculado, quente e pecaminoso”, é bode expiatório de toda a libido violenta, machista e racista, universalizada através da mídia e de suas megaproduções.
Enquanto mulheres brancas têm sua sexualidade castrada e imaculada, o corpo negro, construído como “maculado, quente e pecaminoso”, é bode expiatório de toda a libido violenta, machista e racista, universalizada através da mídia e de suas megaproduções.
A violência escravocrata incidiu de forma
bem singular sobre a vida das mulheres negras no Brasil. O moralismo
colonial que vigiava mulheres brancas, sub a mascara da proteção, e as
impediam de viver sua sexualidade não incidia a sobre a vida das
mulheres negra, já que na condição de escravas essa parcela da população
foi coisificada. Enquanto uma mercadoria, esse ser humano sem alma,
poderia ter seu corpo e sua força de trabalho explorada.
A mulher negra, para além da submissão do
patriarcado, sofre a degradação por razões de raça e da inferioridade
social imposta pela escravidão e pelo racismo contemporâneo.
O tema da sexualidade, que já evoca uma
cadeia de ações repressoras por parte de estruturas do estado moderno,
ainda muito ancorado na Moral Cristã, ganha uma dimensão mais profunda
quando se trata do corpo negro, e sobretudo, das mulheres negras. Neste
sentido, os avanços acerca da relação da sociedade com a sexualidade de
modo geral, chegou de forma muito incipiente, e quase insignificante
para as mulheres negras.
A violência escravocrata dos estupros
caseiros, se reproduzem ainda em relações atuais. Nossa geração de
mulheres negras (jovens) conviveu com um tempo onde era muito comum o
estupro de empregadas domésticas, que viviam nas “casas de família”
(modernas Casas-Grandes) pelos patrões, além da iniciação da vida sexual
dos filhos com essas mulheres. É óbvio que os últimos avanços no
empoderamento das empregadas domésticas, sobretudo a PEC das domésticas,
vem revertendo este cenário, pois cada vez menos, as trabalhadoras
domésticas dormem nas casas onde trabalham.
Toda essa carga histórica que é material
na vida de cada mulher negra deste país, foi e ainda é bastante
reforçada pela mídia, cotidianamente. A mídia naturaliza a exploração e
reforça o estereótipo da hipersexualização. Isto nos ajuda a entender
porque, no imaginário nacional, o estrupo, que é uma pratica condenável,
abre brecha para julgamentos que culpabilizam a vítima e justificam o
ato do estuprador.
Os argumentos que estruturam essa lógica
são os mais diversos: a roupa usada, o consumo de bebidas alcoólicas,
estar em um lugar inapropriado, entre outros. Nesta lógica conservadora
de analisar os fatos, homens são incontroláveis, por isso as mulheres
tem o dever de não provocar sua excitação e que no caso das mulheres
negras tem um agravante, já que elas são consideradas “naturalmente”
disponíveis sexualmente.
É justamente a ação racista e machista da
mídia, costurada por outros eixos da cultura nacional, como a música e a
literatura, que possibilita que essas opiniões tenham força social, por
mais absurdas que pareçam, sendo abordadas desta forma da qual falamos
aqui.
Esta movimentação do sentido e do
discurso dominante, é feita de forma sutil e muitas vezes cínica.
Observamos que nos últimos períodos, há uma tentativa midiática de
cooptação desse segmento em ascensão. Mesmo sendo uma ascensão ainda
muito lenta, a população negra passou a ser uma parte relevante público
consumidor de “produtos culturais”. A armadilha mora na confusão que se
coloca entre uma possível promoção ou visibilização do corpo da mulher
negra e sua caricaturização erotizada e permanentemente violentada.
“Sexo e as Negas” é uma dessas armadilhas.
A rede Globo vem criando estas armadilhas como nenhuma outra emissora. Começou com uma espécie de cotas para negros em papéis menos marginalizados, mas ainda sem nenhum protagonismo. Até em novelas sobre escravidão, os papéis de destaque sempre foram atribuídos aos brancos que, ironicamente, lutavam pela libertação dos escravos.
Em “Da cor do pecado”, a única nos
últimos tempos com um real protagonismo negro, através do papel de Taís
Araújo, várias leituras racistas eram veiculadas de forma subjetiva e
objetiva. Sobretudo a partir do título e de todo o discurso construído
ao longo da obra por meio fala das protagonistas “vilãs”, interpretadas
por Giovana Antonelli e Lima Duarte. Em contraposição, muito pouco era
dito pela boca das outras personagens mais “justas”, do ponto de vista
de um discurso educativo, honesto, de enfrentamento ao racismo. Ou seja,
o discurso racista era colocado à luz do holofote e a reação da negra
era apenas de uma resistência individual, de luta pessoalizada e
emotiva.
Mais recentemente, a Globo lança o
programa “Esquenta”. Mais uma vez esbarramos no título. O que se
pretende que a gente esquente? O mercado financeiro? A universidade? O
desenvolvimento do país? A produção cultural? Não. E não nos interessa
se uma vez ou outra foi feito um debate sério sobre o racismo neste
programa: sua estética, seu cenário, sua construção discursiva e linha
de conteúdos demonstra o quanto a globo tem interesse em nos manter em
um lugar folclorizado, reduzido, caricaturado.
Não que não gostemos de música popular,
arte erótica e arte de rua. Somos capazes e produzir o que quisermos, o
que não nos falta é bagagem cultural e criatividade. Acontece que não
queremos estar nestes espaços isolados, sem poder cruzar a fronteira. A
sociedade burguesa e racista brasileira, não conseguindo invisibilizar
completamente determinadas características do povo negro, passou a fazer
pequenas concessões para nos permitir alguns lugares de destaque. A
música e a arte popular de modo geral, passaram a ser espécie de guetos
para negras e negras “bem-sucedidas”.
Como se reservando estes lugares,
pudessémos nos contentar e nos acomodar. Nada contra, muito pelo
contrário. Acreditamos nossa capacidade de superar o racismo e
protagonizar o processo de reescritura da população brasileira e sua
história. Mas isto não acontecerá apenas através das produções culturais
e muito menos neste tipo de produção midiática.
Nós, mulheres negras, queremos e vamos
estar nos cargos dirigentes, nas salas de aula, nos movimentos sociais,
na arte, nas iniciativas contra-comunicacionais. Sabem por quê? Porque
queremos estar à frente da construção de uma hegemonia política
feminista, anti-racista e socialista neste país.
Nossa denúncia e apelo não é à rede Globo
ou a esta mídia conservadora, mas ao Governo Federal que já recebeu
denúncia através da SEPIR (Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade
Racial) e, sobretudo, à sociedade civil (organizada e não-organizada),
para a importância de um novo marco regulatório das comunicações.
Em uma mídia democratizada, racistas não passarão.
*Moara Correa (MG) e Bruna Rocha (BA) são militantes da Marcha Mundial das Mulheres e do Coletivo Enegrecer.
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